terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O TEXTO


Nota: para o entendimento consolidado dos comentários críticos apresentados, deve consultar a Proposta da OPP, disponível em:



Comentários respeitantes à NOTA PRÉVIA da Proposta de Código

I. Considerações Críticas Preliminares

I. 1. Democracia e Cidadania

Atendendo aos Princípios Gerais elencados no artigo 75º (página 1 de 4), entendemos necessária a inclusão de uma alínea que defenda, em sentido abrangente, a congruência entre estes Princípios Gerais e a afirmação dos valores democráticos da sociedade portuguesa e do exercício de cidadania. Propomos à Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) uma menção clara da obrigação de respeito por estes princípios democráticos e de cidadania que se entendem como transversais às intenções de actuação e de intervenção dos/as psicólogos/as sobre as quais a proposta de Código Deontológico pretende legislar. 

I. 2. Igualdade de Género

O uso da expressão “Homem” em diferentes momentos da proposta do Código, configura em termos de uma psicologia actualizada e informada (nomeadamente na área dos estudos de género), a observação de uma norma de género, sexuada e excludente das mulheres, logo assimétrica e promotora de desigualdades. Tal emerge como inaceitável na tentativa de regular a prática de uma psicologia capaz de integrar a dimensão de género e de reconhecer às mulheres direitos iguais, como constatado na Constituição Portuguesa nos seus artigos 9º - aliena h), quando considera a igualdade entre homens e mulheres uma tarefa fundamental do Estado Português, bem como no artigo 13º, respeitante à igualdade perante a lei. Requeremos a sua substituição pela designação inclusiva de ser humano.
O uso sistemático do masculino universal, patente em expressões como “os psicólogos”, subalterniza a situação maioritária das mulheres na psicologia e não permite um reconhecimento sistemático por parte da OPP dessa situação. O documento deverá optar pela designação o/a psicólogo/a.

I. 3. Diversidade Epistemológica e Metodológica

Não é claro o que se entende, na página 3 de 4, por ““os princípios gerais são, por natureza, racionais…”. Se a Psicologia foi atravessada por clivagens epistemológicas decorrentes de um racionalismo filosófico, não é evidente que tal se possa aplicar a toda a produção científica e às multiplicadas formas de intervenção no quadro da ciência psicológica. Porque as epistemologias (e, decorrentemente, as metodologias) da psicologia são de ordem variada, não deve um Código Deontológico traduzir apenas uma de inúmeras possibilidades, porque subsume a riqueza dessas diferentes epistemologias e metodologias, assentando num pensamento hegemónico que subrepresenta a diversidade interna da disciplina e que tende a não ver reconhecidas as áreas de intervenção de muitos/as psicólogos/as, ora não sendo capaz de regulamentar estas áreas, ora regulamentando-as inapropriadamente.

 
Comentários respeitantes aos PRINCÍPIOS GERAIS da Proposta

 
II. Sobre o Princípio A – Respeito pela dignidade e direitos da pessoa (páginas 3 e 4 de 22)

Na página 3 de 22, lê-se que “os psicólogos […] não devem fazer distinções entre os seus clientes por outros critérios que não os relacionados com o problema apresentado” [sublinhado nosso]. “O problema apresentado” tem, segundo esta formulação, primazia nos pressupostos e nas práticas da psicologia, não existindo referência à necessidade de extensão das preocupações deontológicas em causa às inúmeras realidades regidas pelas lógicas da promoção e da prevenção (ou seja, para lá das situações de crise e/ ou de resolução de problemas). Assim, propomos que a expressão “o problema apresentado” seja substituída, por "questões apresentadas", recorrendo a uma reformulação que contemple uma concepção mais generalista e descentrada do "problema".  
  
Na página 4 de 22, apela-se à obrigação do respeito pela “autonomia” e pela “auto-determinação do seu cliente”, o que nos surge como decorrente de uma lógica individualizante que não atende ao desenvolvimento psicológico no quadro das relações em contexto. Nesse sentido, propomos a inclusão da expressão “empoderamento”, enquanto expressão complementar à de “autonomia” e de “auto-determinação”[1].  

III. Sobre o Princípio B - Competência (páginas 3 e 4 de 22)

Na Página 4 de 22, defende-se que “a competência é adquirida através de uma formação teórica e prática especializada, obtida no ensino superior e constantemente actualizada, bem como de uma formação prática supervisionada pelos seus pares [sublinhado nosso]”. Se se trata de “pares”, o que deve defender-se é a partilha, e não a “supervisão, dos saberes e das práticas em menção.    

Na Página 5 de 22:

a) deve ser reformulada a menção à “Psicologia como estudo do indivíduo enquanto tal [sublinhado nosso]”, não apenas por questões de precisão conceptual, mas porque em tal menção se excluem os contextos e sistemas sociais, também estes objecto de estudo e de intervenção da Psicologia (em concordância com o que antes apontámos a propósito da lógica individualizante da proposta de Código). Sem salvaguarda desta abrangência dos objectos de análise e de intervenção psicológicas, são de imediato excluídas áreas como a psicologia social, a psicologia comunitária, a psicologia feminista, a psicologia organizacional, a psicologia da educação, entre outras. O que propomos, portanto, é que os contextos sociais sejam explicitamente integrados na definição de Psicologia.

b) é dito que “poderão os psicólogos prever as consequências da sua intervenção […], sendo por isso responsáveis por elas” [sublinhados nossos]. Tal afirmação carece de consistência lógica, tendo em vista que se assume a capacidade de previsão sobre algo que, não raras vezes, ultrapassa a possibilidade de assumpção de responsabilidades. Por esta razão, propomos a retirada da noção de previsibilidade.  

IV. Sobre o Princípio C – Responsabilidade (páginas 4 e 5 de 22)

Na página 5 de 22, é manifestamente pouco claro o significado e o alcance da seguinte passagem: “passa-se de uma definição que poderia corresponder ao termo anglo-saxónico accountability […], para um conceito mais alargado que responsabiliza o psicólogo por ajudar todos aqueles que necessitem dos seus serviços profissionais. Esta constatação não pretende induzir a ideia de que algumas pessoas terão maior poder do que outras [sublinhado nosso]”. O risco aqui comportado é o de uma interpretação assente na negação de desigualdades sociais, inevitavelmente geradoras de diferenças de poder e ampla e recorrentemente denunciadas em vários relatórios internacionais e reconhecidas por todos e todas. A menção ao “poder” deve, nesta óptica, ser eliminada. 

Na página 6 de 22, o segundo parágrafo tenta contextualizar as dimensões sociais e individuais do comportamento[2]. Reconhecendo a probabilidade de conflito dos/as psicólogos/as quando o seu desempenho profissional se coloca entre estes dois níveis de real (o individual e o social), não se entende a proposta de Código quando designa que “o psicólogo deve procurar um meio de suprimir, na medida do possível, as potenciais consequências negativas a estes dois níveis”. O que se entende aqui por “suprimir” e por “potenciais consequências negativas”? A dificuldade de compreensão desta proposta acentua-se com a frase que encerra o parágrafo: “A referência ao interesse social obriga não apenas a considerar a comunidade humana, mas também todas as outras componentes do mundo natural em que o Homem se insere”. Pode entender-se a comunidade humana como componente do “mundo natural”? De que se fala quando se fala deste “mundo natural”? E a que “outras componentes” desse “mundo natural” está a referir-se esta frase? 

V. Sobre o Princípio D – Integridade (páginas 6 e 7 de 22)

Na página 6 de 22, a afirmação “a integridade é a qualidade daquele que revela inteireza moral, também definida como virtude, uma conjugação coerente dos aspectos do eu”, submete a priori os/as utilizadores/as da psicologia a uma moralização que denota uma ordem dominante. Ora, não é desejável que o/a psicólogo/a deva fundamentar as suas intervenções em termos do ajustamento do individuo a códigos morais dominantes.

Ao anteriormente exposto acresce que quando se afirma que “a integridade (…) poderá ficar comprometida sempre que o profissional se deixar influenciar pelas suas próprias motivações ou crenças….”. É preciso um esclarecimento. Esta suposição implica uma perspectivação positivista da psicologia, em que a recusa de que o/a psicólogo/a tenha motivações/crenças alimenta uma concepção em que estas motivações ou crenças, em vez de serem assumidas, são mantidas secretamente e a montante das intervenções. Ora, seria preferível que estas crenças/motivações fossem assumidas e discutidas com/ entre os/as utilizadores/as da disciplina, como certas epistemologias da psicologia defendem. Propomos, então, que o Código se abstenha de preferências epistemológicas e que tal referência de pendor positivista seja suprimida.

Comentários respeitantes aos PRINCÍPIOS ESPECÍFICOS da Proposta


VI. Sobre o Ponto 1. Consentimento Informado (páginas 8 e 9 de 22)

No sub-ponto 1.7. - Registo de informação, deveria vir elencada, de imediato, a necessidade de garantia de privacidade e confidencialidade como imperativo da intervenção psicológica (ou seja, não apenas em “situações específicas”, como menciona a proposta de Código, mas em qualquer situação de investigação e/ ou de actuação nos domínios da psicologia).


VII. Sobre o Ponto 2. Privacidade e Confidencialidade (páginas 10, 11, 12 e 13 de 22)

Na frase da página 10 de 22, “os limites desta informação devem ser sempre objecto de discussão prévia com os indivíduos avaliados [sublinhado nosso]”, devia ser retirada a expressão “avaliados”. Há muitas situações em que não há forçosamente uma avaliação, pelo que a informação deverá ser discutida independentemente de haver ou não propósitos e efectivações de processo(s) avaliativo(s).

VIII. Sobre o Ponto 3. Relações Profissionais (páginas 13 e 14 de 22)

No sub-ponto 3.1. Promover a boa prática da Psicologia, lê-se que “os psicólogos […] não desacreditam colegas, independentemente de estes utilizarem os mesmos ou outros modelos teóricos ou metodologias de intervenção, com validade científica e profissional empiricamente demonstradas”. Não é claro o que se entende por empiricamente demonstradas ou cientificamente válidas, nem tal é aplicável ao espectro de toda a psicologia. A questão da evidência científica, como sempre, é probabilística, não se trata de uma certeza. É necessário incluir definições do que se entende por estas expressões[3].

VIII. Sobre o Ponto 5. Prática e Intervenção Psicológicas (páginas 16, 17 e 18 de 22)

No sub-ponto 5.4. – Preocupações de isenção e objectividade na intervenção, é mencionado que os/ as psicólogos/as “procuram assegurar a maior isenção e objectividade possíveis [sublinhado nosso]”. Tais valores de investigação só são aplicáveis sob a égide do positivismo, havendo um conjunto de epistemologias da psicologia em que tal não é aplicável[4]. Ora, como privilegiar uma modalidade epistémica da investigação, sem incluir outras e, portanto, sem criar hierarquias epistemológicas? É necessário redefinir estas expressões ou no mínimo, explicitá-las.

No sub-ponto 5.6. – Minorias culturais, é imperativo integrar explicitamente a “orientação sexual”, sob pena de exclusão de um grupo social já demasiado afectado na sua história por intervenções psicológicas que auxilia(ra)m a ostracização de orientações sexuais não-normativas. Trata-se de sublinhar mais cuidadosamente que os/as psicólogos/as não podem discriminar indivíduos em função da sua orientação sexual e que o Código da OPP reconhece também a importância do cumprimento da Constituição da República, cujo artigo 13º menciona explicitamente a orientação sexual.

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IX. Sobre o Ponto 7. Investigação (páginas 19, 20 e 21 de 22)

Em consonância como o que foi proposto em I. 3. – Diversidade Epistemológica e Metodológica, este Ponto deve aplicar-se de modo mais claro e explícito a várias metodologias, que não apenas as de ordem experimental (tais como as metodologias correlacionais e qualitativas). De uma forma global, consideramos que a revisão do Código Deontológico em discussão deve reconhecer e integrar os cuidados referentes à investigação através de um alargamento às diferentes metodologias a que os/as investigadores/as em Psicologia recorrem, num espectro amplo e, por isso, não centralizado nas abordagens experimentais.       

    

Notas

[1] A tendência para a estrita centração no indivíduo faz-se notar igualmente na página 7 de 22 onde é dito que: “o profissional deverá ter em conta que a pessoa deve estar no centro das suas inquietações” [sublinhado nosso]. Deverá ser mais evidente uma concepção de pessoa ligada aos contextos sociais, fulcrais para a intervenção psicológica.
[2] Diz o referido parágrafo: “Num mundo cada vez mais centrado no valor da autonomia individual, não pode ser negada uma maior atenção à vida em sociedade e às responsabilidades que esta comporta. O interesse da sociedade deverá ser objecto de atenção por parte dos profissionais, tal como os interesses e os direitos de cada indivíduo. A dificuldade reside no facto de, por vezes, o interesse individual poder entrar em conflito com o interesse social. Nestas circunstâncias, o profissional deve procurar um meio de suprimir, na medida do possível, as potenciais consequências negativas a estes dois níveis. A referência ao interesse social obriga não apenas a considerar a comunidade humana, mas também todas as outras componentes do mundo natural em que o Homem se insere”. 
 [3] A evidência científica é, aliás, tomada transversalmente neste documento numa ausência de posicionamentos críticos que reconheçam que o trabalho científico é sempre um trabalho em construção. Será preciso definir mais claramente o que é entendido por esta evidência, sob pena de má aplicação dos saberes no contexto das múltiplas práticas que integram a psicologia no seu todo considerada.
[4] Relembra-se que esta crítica sobre a subordinação a lógicas que privilegiam uma concepção positivista foi já apontada a respeito do Princípio D – Integridade (mais especificamente, sobre o papel das motivações ou crenças dos/as psicólogos/as no exercício das suas funções).